Medicina de precisão para transtornos de humor

Medicina de precisão para transtornos de humor

Por Dr. Petrus Raulino

O que são os transtornos de humor?

Os transtornos de humor afetam 1 em cada 4 pessoas ao longo da vida. Além de incapacitantes, são também co-mórbidos com outros transtornos psiquiátricos.

Devido à falta de testes objetivos para diagnóstico e ao estigma, os transtornos de humor costumam ser subdiagnosticados ou mal diagnosticados (por ex., diagnóstico de depressão em vez de transtorno bipolar).

Estudo sobre medicina de precisão

Para mudar o processo frequentemente longo de obter um diagnóstico e tratamento psiquiátrico, uma equipe da Indiana University of Medicine analisou como a medicina de precisão, através de biomarcadores sanguíneos de expressão gênica, poderia ajudar nesse cenário. 

O estudo foi publicado na revista Molecular Psychiatry.

Os biomarcadores indicam a ocorrência de uma determinada função normal ou patológica de um organismo ou uma resposta a um agente farmacológico. Eles são usados, principalmente, para o diagnóstico ou para identificar riscos de ocorrência de uma doença em um paciente.

No estudo, foram encontrados 26 biomarcadores sanguíneos de expressão gênica principais, cujas análises foram levadas adiante. Os biomarcadores foram testados quanto à capacidade preditiva e utilidade clínica em coortes independentes adicionais. 

Para o estudo, foram recrutados voluntários em três coortes independentes:

  1. descoberta” de 26 biomarcadores (uma coorte longitudinal de indivíduos com mudanças diametralmente opostas no estado de humor em pelo menos duas visitas de teste consecutivas); 
  2. validação dos 26 biomarcadores “descobertos” (uma coorte independente de indivíduos com depressão ou mania clinicamente grave); 
  3. teste dos 26 biomarcadores “descobertos” (uma coorte independente para testar a capacidade dos biomarcadores de predizer estados de humor, depressão clínica ou mania, e para predizer futuras hospitalizações por depressão ou mania).

Resultados da pesquisa

Os resultados da pesquisa mostraram a utilidade dos biomarcadores para avaliar riscos que impactam a evolução clínica de pacientes com transtornos de humor.

Esse trabalho foi um grande passo em direção à compreensão, diagnóstico e tratamento dos transtornos de humor. 

A expectativa é de que futuramente os biomarcadores preditores de risco possam ser úteis em abordagens preventivas, antes que se manifeste o transtorno totalmente desenvolvido ou ocorra recidiva. 

 

Referências

Le-Niculescu, H., Roseberry, K., Gill, S. S., Levey, D. F., Phalen, P. L., Mullen, J., ... & Niculescu, A. B. (2021). Precision medicine for mood disorders: objective assessment, risk prediction, pharmacogenomics, and repurposed drugs. Molecular Psychiatry, 1-29.

Lenze, E. J., Rodebaugh, T. L., & Nicol, G. E. (2020). A framework for advancing precision medicine in clinical trials for mental disorders. JAMA psychiatry77(7), 663-664.

Alhajji, L., & Nemeroff, C. B. (2015). Personalized medicine and mood disorders. Psychiatric Clinics38(3), 395-403.


Neuroimagem e estrutura cerebral em transtornos psiquiátricos

Neuroimagem e estrutura cerebral em transtornos psiquiátricos

Por Dr. Petrus Raulino

Sobre os estudos de neuroimagem

Estudos de neuroimagem têm demonstrado de forma consistente alterações cerebrais em diferentes transtornos psiquiátricos. 

Esses estudos têm uma grande relevância científica, mas não necessariamente trazem impacto imediato na prática clínica. São muitas as razões para isso.

O “padrão-ouro” atual para diagnóstico de um transtorno psiquiátrico é o conjunto de informações sobre sintomas e comportamentos, e não uma descrição das características biológicas.

Os achados biológicos estatisticamente significativos em transtornos psiquiátricos nos estudos de neuroimagem em geral são muito sutis. 

Os achados replicados em estudos são aproximados, e as amostras são heterogêneas, ainda que compostas por pacientes com o mesmo transtorno.

Por tudo isso, não há biomarcadores universalmente aceitos para o diagnóstico psiquiátrico. Exames sofisticados custam recursos e nem sempre trazem informações que dariam suporte à decisão médica de utilidade clínica.

Mas nem por isso as pesquisas devem ser interrompidas. 

Nas últimas décadas, a ciência tem realizado pesquisas que buscam um melhor entendimento da neurobiologia dos mecanismos etiológicos dos transtornos psiquiátricos. 

O grande objetivo é encontrar meios de potencializar os esforços preventivos e terapêuticos.

Novos estudos publicados

Um estudo publicado na revista Biological Psychiatry mostrou – através de estudos de mega e meta-análises de neuroimagem – anormalidades estruturais em seis diferentes transtornos psiquiátricos: Transtorno Depressivo Maior (TDM), Transtorno Bipolar (TB), Esquizofrenia, Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e Transtorno do Espectro Autista (TEA).

Esse estudo foi realizado através do consórcio ENIGMA (Enhancing Neuro Imaging Genetics Through Meta Analysis), que reúne pesquisadores para entender a relação entre estrutura, função e doenças do cérebro, com base em imagens cerebrais e dados genéticos.

Foram estudadas a espessura cortical e as diferenças de volumes de estruturas subcorticais entre indivíduos com e sem transtornos psiquiátricos.

O estudo buscou quantificar a sobreposição de alterações na estrutura cerebral entre transtornos diferentes e também identificar regiões cerebrais com anormalidades transtorno-específicas.

Resultados do estudo

Os resultados encontrados demonstraram que existe correlação entre anormalidades estruturais do cérebro no TDM, TB, Esquizofrenia e TOC.

Foi observada uma assinatura morfométrica compartilhada desses transtornos que mostrou pouca semelhança com os padrões estruturais do cérebro relacionados ao envelhecimento fisiológico.

Por outro lado, padrões de anormalidades estruturais cerebrais independentes de todos os outros transtornos foram observados tanto no TDAH quanto no TEA. 

Regiões do cérebro que mostraram altas proporções de variância independente foram identificadas para cada transtorno com o objetivo de localizar anormalidades morfométricas específicas do transtorno.

Conclusão

Esses achados levantaram a questão de até que ponto as anormalidades estruturais do cérebro podem representar traços neurobiológicos de doenças mentais que são específicos para transtornos ou se seriam traços transdiagnósticos.

Muitas são as questões, mas a jornada de investigação científica continua. Uma melhor compreensão da neurobiologia dos transtornos psiquiátricos pode nos ajudar futuramente a aperfeiçoar os meios para prevenção e tratamento.

 

Referências

Opel, N., Goltermann, J., Hermesdorf, M., Berger, K., Baune, B. T., & Dannlowski, U. (2020). Cross-disorder analysis of brain structural abnormalities in six major psychiatric disorders: a secondary analysis of mega-and meta-analytical findings from the ENIGMA consortium. Biological Psychiatry88(9), 678-686.

Falkai, P., Schmitt, A., & Andreasen, N. (2018). Forty years of structural brain imaging in mental disorders: is it clinically useful or not?. Dialogues in clinical neuroscience20(3), 179.

Scarr, E., Millan, M. J., Bahn, S., Bertolino, A., Turck, C. W., Kapur, S., ... & Dean, B. (2015). Biomarkers for psychiatry: the journey from fantasy to fact, a report of the 2013 CINP think tank. International Journal of Neuropsychopharmacology18(10), pyv042.

Kapur, S., Phillips, A. G., & Insel, T. R. (2012). Why has it taken so long for biological psychiatry to develop clinical tests and what to do about it?. Molecular psychiatry17(12), 1174-1179.

Linden, D. E. (2012). The challenges and promise of neuroimaging in psychiatry. Neuron73(1), 8-22.

 


Mutação genética ultra rara em pacientes com esquizofrenia

Mutação genética ultra rara em pacientes com Esquizofrenia

Por Dr. Petrus Raulino

 

O que é Esquizofrenia?

A esquizofrenia é um transtorno mental que acomete cerca de 20 milhões de pessoas em todo o mundo. Muitas pesquisas têm identificado a importância do papel dos genes nesse transtorno.

A genética da esquizofrenia é complexa, multifatorial e poligênica. Há centenas ou talvez milhares de genes envolvidos na doença.

Dada a enorme heterogeneidade da doença, cada paciente é praticamente único na combinação de genes que o levou ao transtorno. 

A identificação de variantes genéticas raras associadas à esquizofrenia tem se mostrado desafiadora devido à heterogeneidade genética das populações. 

Mas uma nova mutação genética que bloqueia a comunicação neural foi descoberta recentemente em pacientes com esquizofrenia. Pode abrir caminho para novas estratégias terapêuticas e aumentar a compreensão da fisiopatologia da doença.

Essa descoberta foi realizada através de um estudo no Feinstein Institutes for Medical Research nos EUA e publicado na revista Neuron.

Estudo sobre genomas com esquizofrenia

O estudo foi realizado com uma população relativamente homogênea, uma coorte de judeus asquenazes, para examinar os genomas de pacientes com diagnóstico de esquizofrenia e um grupo controle.

O objetivo do estudo foi encontrar mutações isoladas que pudessem ser observadas várias vezes no grupo esquizofrenia.  Isso foi possível com o grupo homogêneo de judeus asquezanes. 

Resultados do estudo

A mutação do gene PCDHA3 foi identificada em cinco dos 786 casos de esquizofrenia. A mutação do gene PCDHA3 é uma variante ultra rara que não foi encontrada em nenhum indivíduo do grupo controle.

O gene PCDHA3 deriva da família do gene da protocaderina e bloqueia a ação dela, não permitindo que os neurônios se reconheçam e se comuniquem com outros neurônios.

Conclusão

Novos estudos serão essenciais para avaliar como o tratamento da esquizofrenia pode melhorar qualquer alteração causada por essa mutação genética.

A descoberta da mutação do gene PCDHA3 em pacientes com esquizofrenia não tem um impacto imediato na prática clínica. Mas tem relevância científica, pois agrega mais uma peça na compreensão sobre as bases genéticas da esquizofrenia.

 

Referências

Lencz, T., Yu, J., Khan, R. R., Flaherty, E., Carmi, S., Lam, M., ... & Pe’er, I. (2021). Novel ultra-rare exonic variants identified in a founder population implicate cadherins in schizophrenia. Neuron.

Charlson, F. J., Ferrari, A. J., Santomauro, D. F., Diminic, S., Stockings, E., Scott, J. G., ... & Whiteford, H. A. (2018). Global epidemiology and burden of schizophrenia: findings from the global burden of disease study 2016. Schizophrenia bulletin44(6), 1195-1203.

Mistry, S., Harrison, J. R., Smith, D. J., Escott-Price, V., & Zammit, S. (2018). The use of polygenic risk scores to identify phenotypes associated with genetic risk of schizophrenia: Systematic review. Schizophrenia research197, 2-8.

Avramopoulos, D. (2018). Recent advances in the genetics of schizophrenia. Molecular neuropsychiatry4(1), 35-51.

Henriksen, M. G., Nordgaard, J., & Jansson, L. B. (2017). Genetics of schizophrenia: overview of methods, findings and limitations. Frontiers in human neuroscience11, 322.


Medicamentos epigenéticos para transtornos de ansiedade?

Medicamentos epigenéticos para transtornos de ansiedade?

Por Dr. Petrus Raulino

Sobre os medicamentos epigenéticos

Medicamentos epigenéticos para transtornos de ansiedade ainda não são uma realidade na prática clínica, pois estão em fase de pesquisa experimental. Mas vale a pena acompanhar a evolução do conhecimento e saber sobre pesquisas em andamento. 

Os transtornos de ansiedade são transtornos mentais comuns com uma prevalência anual global de 7,3%. A idade de início desses transtornos geralmente é por volta dos 20 anos, com as mulheres tendo duas vezes mais chances de receberem o diagnóstico.

Acredita-se que fatores psicológicos e biológicos contribuam para a patogênese dos transtornos de ansiedade.

Fatores psicológicos

Os fatores psicológicos envolvidos na patogênese envolvem eventos traumáticos e estressantes da vida, especialmente durante a infância. O estresse é conhecido por ativar muitos circuitos neuronais, como os do hipocampo, e o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HPA).

Dentre os fatores biológicos, estão envolvidos mecanismos epigenéticos de expressão gênica, ou seja, traços complexos envolvendo múltiplos genes interagindo com fatores ambientais (não envolvendo mudanças na sequência do DNA, mas alterando a atividade de genes).

Os mecanismos epigenéticos envolvem mecanismos moleculares como metilação do DNA, hidroximetilação do DNA, modificações de histonas e regulação da expressão gênica mediada por RNA não codificador (ncRNA). 

Fatores biológicos

Fatores ambientais podem provocar alterações nos mecanismos epigenéticos.

Há evidências de que os mecanismos epigenéticos apresentam-se desregulados em praticamente todos os tipos de transtornos psiquiátricos e que esses mecanismos desregulados contribuam para a patogênese.

A importância de novas pesquisas

Existem várias classes de medicamentos eficazes para o tratamento da ansiedade. No entanto, nem todas as pessoas se adaptam aos medicamentos disponíveis atualmente, devido a efeitos colaterais ou falta de resposta terapêutica satisfatória.

Por isso, a importância de novas pesquisas. Uma classe potencial de novos medicamentos para o tratamento da ansiedade são os medicamentos epigenéticos.

Ensaios pré-clínicos e clínicos farmacológicos – ainda experimentais – usando HDACi (inibidor da histona-desacetilase) para o tratamento estão mostrando resultados favoráveis, o que permite a continuidade das pesquisas com amostras maiores de pacientes.

Conclusão

O modo de ação do HDACi em transtornos de ansiedade ainda não está claro. Mais pesquisas são necessárias para elucidar o modo de ação do HDACi no alívio dos sinais e sintomas dos transtornos de ansiedade.

Há um longo caminho a seguir nessa linha de pesquisa, mas o conhecimento científico abre novas possibilidades que poderão transformar futuramente o rol de opções terapêuticas para os transtornos de ansiedade.

 

Referências

Peedicayil, J. (2020). The Potential Role of Epigenetic Drugs in the Treatment of Anxiety Disorders. Neuropsychiatric disease and treatment16, 597.

Schiele, M. A., & Domschke, K. (2018). Epigenetics at the crossroads between genes, environment and resilience in anxiety disorders. Genes, Brain and Behavior17(3), e12423.

Stein, D. J., Scott, K. M., de Jonge, P., & Kessler, R. C. (2017). Epidemiology of anxiety disorders: from surveys to nosology and back. Dialogues in clinical neuroscience19(2), 127.

Bartlett, A. A., Singh, R., & Hunter, R. G. (2017). Anxiety and epigenetics. Neuroepigenomics in Aging and Disease, 145-166.

Maron, E., & Nutt, D. (2015). Biological predictors of pharmacological therapy in anxiety disorders. Dialogues in clinical neuroscience17(3), 305.

 


Efeitos epigenéticos induzidos por estabilizadores de humor na esquizofrenia e nos transtornos afetivos

Efeitos epigenéticos induzidos por estabilizadores de humor na Esquizofrenia e nos transtornos afetivos

Por Dr. Petrus Raulino

Uma pesquisa publicada na revista Frontiers in Pharmacology e realizada pelo Departamento de Psiquiatria e Psicologia da Mayo Clinic apresentou uma revisão sistemática de estudos que investigaram alterações epigenéticas induzidas por estabilizadores de humor não antipsicóticos (valproato, lítio, lamotrigina e carbamazepina).

A revisão buscou artigos científicos com modelos animais, linhagens celulares humanas e pessoas com Transtorno Bipolar, Esquizofrenia e Transtorno Depressivo Maior.

O epigenoma

Conhecer o epigenoma – a dinâmica que determina a expressão dos genes – permite saber melhor como os genes funcionam. O epigenoma responde a sinais ambientais “ligando” ou “desligando” a atividade de genes.

As alterações epigenéticas envolvem rearranjos de cromatina reversíveis que induzem padrões de expressão gênica mitoticamente hereditária, estável, de longo prazo e reversível sem alterar a sequência de DNA.

A metilação do DNA e as modificações nas histonas são as marcas epigenéticas mais estudadas em contextos fisiológicos e patológicos.

Em circunstâncias fisiológicas, os mecanismos epigenéticos controlam os processos neurobiológicos, mas a desregulação desses mecanismos pode se traduzir em um aumento do risco de desenvolvimento de doença.

Epimutações secundárias às interações gene-ambiente foram descritas como tendo um papel fundamental na fisiopatologia dos principais transtornos psiquiátricos, pois o material genético pode responder a modificações das condições ambientais.

Apesar da complexidade genética dos transtornos mentais, as evidências sugerem que o epigenoma pode ser modificado por estabilizadores de humor, potencialmente traduzindo-se em mudanças de longo prazo na evolução do transtorno.

Conclusão da pesquisa

A revisão concluiu que os dados científicos disponíveis confirmam efeitos do valproato e lítio no epigenoma de genes associados a transtornos psiquiátricos por diferentes mecanismos, sobretudo metilação de DNA e acetilação de histonas.

A revisão sugeriu que lamotrigina e carbamazepina podem ter um papel maior na ativação de mecanismos epigenéticos do que o número reduzido de estudos com esses fármacos parece sugerir.

Uma compreensão mais avançada das alterações epigenéticas induzidas por fármacos poderá facilitar no futuro intervenções personalizadas.

 

Referências

Gardea-Resendez, M., Kucuker, M. U., Blacker, C. J., Ho, A. M. C., Croarkin, P. E., Frye, M. A., & Veldic, M. (2020). Dissecting the epigenetic changes induced by non-antipsychotic mood stabilizers on schizophrenia and affective disorders: a systematic review. Frontiers in pharmacology11, 467.

Esteller, M. (2006). The necessity of a human epigenome project. Carcinogenesis, 27(6), 1121-1125.


Desfechos psiquiátricos e neurológicos em 236.379 sobreviventes de COVID-19

Desfechos psiquiátricos e neurológicos em 236.379 sobreviventes de COVID-19

Por Dr. Petrus Raulino

Desde o início da pandemia de COVID-19 é crescente a preocupação de que os sobreviventes possam ter maior risco de doenças neurológicas e psiquiátricas.

Um estudo observacional com 62.354 sobreviventes de COVID-19 demonstrou aumento do risco de transtornos de humor e ansiedade nos primeiros três meses após a infecção. Inclusive entre pacientes sem qualquer histórico psiquiátrico. 

Com o passar do tempo, novas pesquisas têm contribuído para que a ciência avance ainda mais no entendimento da evolução da COVID-19. 

Surgem pesquisas publicadas com dados em larga escala examinando os riscos de diagnósticos neurológicos e psiquiátricos após seis meses da infecção por COVID-19.

Novo estudo sobre condição psiquiátrica após COVID-19

Um estudo realizado recentemente na Universidade de Oxford e publicado no periódico The Lancet Psychiatry evidenciou que uma em cada três pessoas que sobreviveram à COVID-19 é diagnosticada com uma condição neurológica ou psiquiátrica seis meses após ser infectada.

Para chegar à essa conclusão, o estudo analisou os registros de saúde de mais de 230.000 pessoas com COVID-19 confirmada em 62 organizações de cuidados à saúde, principalmente dos EUA.

Resultados do estudo

No geral, a incidência estimada de diagnóstico de um transtorno neurológico ou psiquiátrico após a infecção por COVID-19 foi de 34%. Para 13% dessas pessoas, foi o primeiro diagnóstico neurológico ou psiquiátrico registrado.

Os diagnósticos mais comuns após COVID-19 foram transtornos de ansiedade (ocorrendo em 17% dos pacientes), transtornos do humor (14%), transtornos por uso de substâncias (7%) e insônia (5%). 

A incidência de desfechos neurológicos foi menor, incluindo 0,6% para hemorragia cerebral, 2,1% para acidente vascular cerebral isquêmico e 0,7% para demência.

Vale ressaltar que essas incidências foram ainda maiores em pacientes que necessitaram de hospitalização e marcantemente maiores naqueles que necessitaram de internação em UTI ou desenvolveram encefalopatia.

Muitas pessoas se perguntam como uma doença respiratória pode causar efeitos psiquiátricos ou neurológicos, e para essa pergunta ainda não está clara a resposta sobre o mecanismo fisiopatológico exato.

Entretanto, há várias hipóteses para os mecanismos potenciais que provocam a associação entre COVID-19 e transtornos psiquiátricos e/ou dano neurológico. Incluem invasão viral do sistema nervoso central, estados hipercoaguláveis e efeitos neurais da resposta imune. 

Conclusão

Infelizmente, muitos dos transtornos psiquiátricos identificados pelas pesquisas sobre COVID-19 tendem a ser crônicos ou recorrentes. Portanto, podemos antecipadamente presumir que o ônus da COVID-19 poderá estar conosco por muitos anos. 

Por outro lado, as pesquisas continuam e também poderão nos trazer informações valiosas de como lidar ou sobrepujar o ônus decorrente da COVID-19.

 

Referências

Lee, M. H., Perl, D. P., Nair, G., Li, W., Maric, D., Murray, H., ... & Nath, A. (2021). Microvascular injury in the brains of patients with Covid-19. New England Journal of Medicine384(5), 481-483.

Taquet, M., Luciano, S., Geddes, J. R., & Harrison, P. J. (2021). Bidirectional associations between COVID-19 and psychiatric disorder: retrospective cohort studies of 62 354 COVID-19 cases in the USA. The Lancet Psychiatry8(2), 130-140.

Taquet, M., Geddes, J. R., Husain, M., & Harrison, P. J. (2021). Six-Month neurological and psychiatric outcomes in 236,379 survivors of COVID-19. The Lancet Psychiatry, April 6, published on-line.

Kreye, J., Reincke, S. M., & Prüss, H. (2020). Do cross-reactive antibodies cause neuropathology in COVID-19?. Nature Reviews Immunology20(11), 645-646.

Meinhardt, J., Radke, J., Dittmayer, C., Franz, J., Thomas, C., Mothes, R., ... & Heppner, F. L. (2021). Olfactory transmucosal SARS-CoV-2 invasion as a port of central nervous system entry in individuals with COVID-19. Nature neuroscience24(2), 168-175.

Rhea, E. M., Logsdon, A. F., Hansen, K. M., Williams, L. M., Reed, M. J., Baumann, K. K., ... & Erickson, M. A. (2021). The S1 protein of SARS-CoV-2 crosses the blood–brain barrier in mice. Nature neuroscience24(3), 368-378.

Panigada, M., Bottino, N., Tagliabue, P., Grasselli, G., Novembrino, C., Chantarangkul, V., ... & Tripodi, A. (2020). Hypercoagulability of COVID?19 patients in intensive care unit: a report of thromboelastography findings and other parameters of hemostasis. Journal of Thrombosis and Haemostasis18(7), 1738-1742.


Antipsicóticos e COVID-19

Antipsicóticos podem proteger contra COVID-19?

Por Dr. Petrus Raulino

A resposta é: ainda não sabemos. Mas há dados interessantes sendo publicados.

Um estudo realizado no hospital universitário Virgen del Rocio na Espanha e divulgado em carta aos editores do periódico Schizophrenia Research sugere que o uso de antipsicóticos pode proteger contra a infecção por SARS-CoV-2 ou levar a uma forma mais leve da doença.

Sobre o estudo

A conclusão do estudo chama a atenção porque muitas pesquisas têm demonstrado maior risco de mortalidade entre pacientes com transtornos psiquiátricos.

Foram avaliados prevalência e prognóstico da COVID-19 em 698 pacientes com transtornos psiquiátricos graves em tratamento com antipsicóticos injetáveis de ação prolongada.

Entre fevereiro e novembro de 2020 somente 1,3% dos pacientes com transtorno psiquiátrico grave (9 de 698 pacientes) foi infectado com SARS-CoV-2, sendo 11,1% sintomáticos (diarreia). Também foi evidenciado diminuição nas internações hospitalares dos pacientes que foram infectados.

O que dizem os outros estudos

Em outro estudo relacionado, os pesquisadores descobriram que muitos genes cuja expressão é alterada por infecção pelo SARS-CoV-2 são infrarregulados por certos antipsicóticos.

Se certos antipsicóticos podem suprimir a expressão de genes e citocinas inflamatórias, em teoria poderiam evitar a “tempestade” de citocinas (hiper-resposta inflamatória).

Os efeitos de certos antipsicóticos nas vias imunológicas, enzimas inflamatórias induzíveis (ciclooxigenase) e ativação da micróglia nos levam a especular que esses fármacos podem proporcionar efeitos protetores contra a infecção por SARS-CoV-2.

Conclusão

Há que se ter cautela na interpretação dos resultados desses estudos, que ainda não podem ser generalizados. Estudos adicionais certamente são necessários, com diferentes populações e amostras cada vez maiores.

Mas o estudo divulgado no periódico Schizophrenia Research tem sua relevância científica, ao apontar o caminho para futuras pesquisas.

 

Referências

Canal-Rivero, M., Barragán, R. C., García, A. R., Torres, N. G., Crespo-Facorro, B., Ruiz-Veguilla, M., & Group, T. P. (2021). Lower risk of SARS-CoV2 infection in individuals with severe mental disorders on antipsychotic treatment: A retrospective epidemiological study in a representative Spanish population. Schizophrenia research229, 53.

Crespo-Facorro, B., Ruiz-Veguilla, M., Vázquez-Bourgon, J., Sánchez-Hidalgo, A. C., Garrido-Torres, N., Cisneros, J. M., ... & Sainz, J. (2021). Aripiprazole as a candidate treatment of COVID-19 identified through genomic analysis. Frontiers in pharmacology12, 346.

Wang, Q., Xu, R., & Volkow, N. D. (2021). Increased risk of COVID?19 infection and mortality in people with mental disorders: analysis from electronic health records in the United States. World Psychiatry20(1), 124-130.

Nemani, K., Li, C., Olfson, M., Blessing, E. M., Razavian, N., Chen, J., ... & Goff, D. C. (2021). Association of psychiatric disorders with mortality among patients with COVID-19. JAMA psychiatry78(4), 380-386.


Transtorno de estresse pós-traumático em pacientes pós-COVID-19 grave

Transtorno de estresse pós-traumático em pacientes pós-COVID-19 grave

Por Dr. Petrus Raulino

O que é o Transtorno de Estresse Pós-Traumático?

O Transtorno de Estresse pós-Traumático (TEPT) é um transtorno mental comum, impactante e complexo que ocorre após exposição a eventos traumáticos.

O TEPT é caracterizado por pensamentos intrusivos e revivência do trauma por meio de:

  • Reações dissociativas tipo flashback;
  • Esforços para evitar pensamentos, sentimentos, lugares ou pessoas relacionados ao trauma;
  • Humor e cognição persistentemente negativos;
  • Hiperexcitação evidenciada por ansiedade, dificuldade de sono e irritabilidade.

A falha na recuperação do TEPT pode ter efeitos prejudiciais no funcionamento social do indivíduo, assim como em sua saúde e vida familiar.

Estudos mostram que indivíduos que passaram por situações de emergência em saúde pública, como pandemias, podem apresentar sintomas de estresse em diferentes graus, mesmo após o fim da situação em questão.

Uma pesquisa realizada pela Fondazione Policlinico Universitario Agostino Gemelli IRCCS em Roma e publicada na JAMA Psychiatry estudou um grupo de pacientes que tiveram o diagnóstico de COVID-19, permaneceram internados e, após a recuperação, foram encaminhados a um serviço de atendimento pós-agudo para avaliação multidisciplinar.

Os pacientes foram avaliados por psiquiatras treinados para o diagnóstico de TEPT de acordo com os critérios do DSM-V.

Resultados do estudo

Dos 381 pacientes avaliados, 115 pacientes (30,2%) apresentaram TEPT. Na amostra total, os diagnósticos adicionais foram episódio depressivo (17,3%), episódio hipomaníaco (0,7%), transtorno de ansiedade generalizada (7%) e transtornos psicóticos (0,2%).

O estudo também demonstrou fatores de risco associados a taxas mais altas de TEPT: sexo feminino; histórico de transtornos psiquiátricos prévios; delirium ou agitação durante a fase aguda da doença; e persistência de sintomas após a hospitalização.

Os achados da pesquisa foram relevantes por nos chamaram a atenção quanto à necessidade de avaliação psiquiátrica para diagnóstico diferencial de pacientes pós-COVID-19 sintomáticos, dada a alta prevalência de TEPT, em linha com estudos no contexto de outras pandemias.

 

Referências

Janiri, D., Carfì, A., Kotzalidis, G. D., Bernabei, R., Landi, F., Sani, G., ... & Post-Acute Care Study Group. (2021). Posttraumatic stress disorder in patients after severe COVID-19 infection. JAMA psychiatry.

Yuan, K., Gong, Y. M., Liu, L., Sun, Y. K., Tian, S. S., Wang, Y. J., ... & Lu, L. (2021). Prevalence of posttraumatic stress disorder after infectious disease pandemics in the twenty-first century, including COVID-19: a meta-analysis and systematic review. Molecular psychiatry, 1-17.

Rogers, J. P., Chesney, E., Oliver, D., Pollak, T. A., McGuire, P., Fusar-Poli, P., ... & David, A. S. (2020). Psychiatric and neuropsychiatric presentations associated with severe coronavirus infections: a systematic review and meta-analysis with comparison to the COVID-19 pandemic. The Lancet Psychiatry, 7(7), 611-627.

Shalev, A., Liberzon, I., & Marmar, C. (2017). Post-traumatic stress disorder. New England Journal of Medicine, 376(25), 2459-2469.

Kirkpatrick, H. A., & Heller, G. M. (2014). Post-traumatic stress disorder: theory and treatment update. The International Journal of Psychiatry in Medicine, 47(4), 337-346.

American Psychiatric Association. (2014). DSM-5: Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Artmed Editora.


Transtorno Bipolar e Neuroquímica

Transtorno Bipolar e Neuroquímica

Por Dr. Petrus Raulino

A neuroquímica do Transtorno Bipolar é complexa e influenciada por vários genes de risco, cada qual com suas características e pequeno efeito.

Mas cada pequena peça desse enorme quebra-cabeça tem sua relevância.

Os efeitos do Transtorno Bipolar

Uma pesquisa translacional publicada na revista Neuron demonstrou que a diminuição da atividade da proteína-quinase B (Akt) pode levar a alterações cerebrais no córtex pré-frontal de homens com Transtorno Bipolar.

A Akt é um tipo de proteína que adiciona marcadores da molécula de fosfato a outras proteínas. Esses marcadores de fosfato atuam como um interruptor liga-desliga, mudando a forma como outras proteínas funcionam e influenciando funções vitais.

No cérebro, essas funções incluem aspectos da comunicação entre neurônios, podendo afetar o humor e o pensamento.

A família das proteínas Akt exerce muitos de seus efeitos celulares por meio da ativação da proteína alvo da Rapamicina (mTOR) através de uma sequência de proteínas intermediárias.

Na pesquisa, os homens com Transtorno Bipolar apresentaram atividade reduzida da via Akt-mTOR no córtex pré-frontal, uma região cerebral importante para processos cognitivos como memória e atenção.

Após observar correlação entre Transtorno Bipolar e via Akt mais silenciosa nos homens bipolares, os pesquisadores aplicaram uma abordagem translacional reversa, ou seja, o estudo foi estendido para intervenção em modelo animal.

Foram usados vírus para fornecer proteínas Akt fragmentadas ao córtex pré-frontal de camundongos. Essas proteínas fragmentadas substituíram as Akt que estavam funcionantes, inibindo a via Akt.

Em testes comportamentais, os camundongos manipulados demonstraram problemas de memória, deixando de explorar ambientes familiares.

Por outro lado, mantiveram comportamento social típico, sugerindo que a via não foi responsável por funções cerebrais mais complexas.

Ao exame do cérebro dos camundongos manipulados, observou-se que as espinhas dendríticas haviam sido danificadas.

As conexões entre neurônios ocorrem através das espinhas dendríticas. A destruição de espinhas dendríticas enfraquece as conexões neuronais e, consequentemente, o processamento cognitivo.

A hipoatividade da via Akt-mTOR no Transtorno Bipolar em homens pode ser um fator para déficit cognitivo – nos aspectos de memória e concentração.

Evidentemente, uma única via de proteínas não dá conta de explicar toda a complexidade do Transtorno Bipolar.

Mas a pesquisa é relevante, pois traz mais uma peça de um imenso quebra-cabeça. Continuamos na trilha das pesquisas.

 

Referências

Vanderplow, A. M., Eagle, A. L., Kermath, B. A., Bjornson, K. J., Robison, A. J., & Cahill, M. E. (2021). Akt-mTOR hypoactivity in bipolar disorder gives rise to cognitive impairments associated with altered neuronal structure and function. Neuron.

Gordovez, F. J. A., & McMahon, F. J. (2020). The genetics of bipolar disorder. Molecular psychiatry, 25(3), 544-559.


Transtorno Bipolar e Neuroinflamação

Transtorno Bipolar e Neuroinflamação

Por Dr. Petrus Raulino

O que é o Transtorno Bipolar?

O Transtorno Bipolar é um subtipo de transtorno de humor. Afeta cerca de 2% da população mundial.

O Transtorno Bipolar é uma condição psiquiátrica caracterizada por no mínimo dois episódios de humor (depressão ou mania) ao longo da vida, sendo que pelo menos um deles deve ser de mania.

Estudos com gêmeos demonstraram que a carga genética do Transtorno Bipolar é da ordem de 70 a 80%.

Existem fortes evidências de que o risco para Transtorno Bipolar é poligênico, ou seja, ocorre por meio de um conjunto de alelos, cada qual apresentando um pequeno efeito para o risco.

Estudos genéticos têm demonstrado expressão aberrante de RNA mensageiro de genes inflamatórios em pacientes com Transtorno Bipolar e seus descendentes.

O papel da Neuroinflamação

Nos últimos anos, as pesquisas científicas têm aumentado substancialmente a compreensão do papel da neuroinflamação em transtornos psiquiátricos.

Uma pesquisa in vitro publicada na revista Stem Cell Reports buscou entender se a sinalização molecular alterada de astrócitos induzida por inflamação estava associada ao Transtorno Bipolar.

Os astrócitos são células conhecidas por participarem da cascata inflamatória dentro do cérebro. Eles são ativados por interleucina-1? (IL-1?) e outras citocinas pró-inflamatórias e, por sua vez, secretam citocinas que participam do processo de neuroinflamação.

A pesquisa comparou marcadores de inflamação em astrócitos derivados de células-tronco pluripotentes (iPSCs) gerados a partir de pacientes com Transtorno Bipolar e de indivíduos saudáveis.

Resultados da pesquisa

A resposta dos astrócitos dos pacientes com Transtorno Bipolar às citocinas pró-inflamatórias revelou um padrão particular, caracterizado pela maior expressão do gene da interleucina-6 (IL-6). Como resultado, essas células secretaram mais IL-6, o que impactou negativamente a atividade de neurônios.

Os fatores secretados pelos astrócitos desempenham um papel na regulação da atividade neuronal e, no caso do Transtorno Bipolar, a IL-6 faz a mediação pelo menos em parte entre os efeitos dos astrócitos estimulados pela inflamação e a atividade neuronal.

Estas descobertas sugerem que a IL-6 pode contribuir para alterações do funcionamento neuronal associados ao Transtorno Bipolar, abrindo novos caminhos para a pesquisa clínica.

 

Referências

Vadodaria, K. C., Mendes, A. P., Mei, A., Racha, V., Erikson, G., Shokhirev, M. N., ... & Gage, F. H. (2021). Altered neuronal support and inflammatory response in bipolar disorder patient-derived astrocytes. Stem Cell Reports.

Gordovez, F. J. A., & McMahon, F. J. (2020). The genetics of bipolar disorder. Molecular psychiatry, 25(3), 544-559.

Benedetti, F., Aggio, V., Pratesi, M. L., Greco, G., & Furlan, R. (2020). Neuroinflammation in bipolar depression. Frontiers in psychiatry, 11, 71.

Colombo, E., & Farina, C. (2016). Astrocytes: key regulators of neuroinflammation. Trends in immunology, 37(9), 608-620.

Craddock, N., & Sklar, P. (2013). Genetics of bipolar disorder. The Lancet, 381(9878), 1654-1662.

Edvardsen, J., Torgersen, S., Røysamb, E., Lygren, S., Skre, I., Onstad, S., & Øien, P. A. (2008). Heritability of bipolar spectrum disorders. Unity or heterogeneity?. Journal of affective disorders, 106(3), 229-240.

McGuffin, P., Rijsdijk, F., Andrew, M., Sham, P., Katz, R., & Cardno, A. (2003). The heritability of bipolar affective disorder and the genetic relationship to unipolar depression. Archives of general psychiatry, 60(5), 497-502.